La Paz acabou por se tornar na nossa cidade-mãe de fim de viagem. Pouco a pouco fizemos da casa da Isa a nossa, habituámo-nos ao ar seco e frio e à altitude, temos já 95% de saturação de oxigénio no sangue a 4000 m e a Tunupa e o Zavicha ladram felizes quando nos vêem.
Como qualquer Paceño que se preze, também nós desenvolvemos uma relação de amor-ódio com a cidade de La Paz, essa babel caótica que se despenha do Altiplano em direcção aos Yungas. Porque há muito para odiar e outro tanto para amar.
Enquanto Europeus, o ruído e o tráfego de La Paz são por vezes de pôr os cabelos em pé. A falta de ordem, a sujidade, a pobreza dos bairros mais altos e a desigualdade, chocam com o nosso conceito de cidade desenvolvida. Por outro lado, a diversidade cultural e social, que raramente tem espaço para existir num mesmo lugar geográfico de forma tão marcada, coexiste livremente nesta cidade. O homem de negócios sério e apressado, que poderia ser avistado em qualquer rua de uma capital europeia, atravessa a estrada ao lado de uma cholita, mulher vestida segundo a tradição Aymara, que poderia vir de uma qualquer aldeia perdida num canto recôndito da Bolívia; e ambos são quase atropelados por um autocarro do tempo da segunda guerra mundial com «Dios es mi salvador» escrito no tablier, que buzina ferozmente e se esquiva habilmente de um BMW Z3, para deixar passar o homem vestido de zebra que trabalha na sensibilização dos automobilistas aos direitos dos peões. Este lado vibrante, louco mesmo, e constantemente em movimento desta cidade desesperante tem, surpreendentemente, algo de cativante. As gentes que cozinham e comem na rua, os mercados que pululam por todo o lado, os cães, as crianças, as praças e mesmo o próprio caos generalizado, conferem à cidade uma atmosfera alegre e dinâmica. Subindo a um dos vários miradouros da cidade (a pé pelos bairros de lata ou no teleférico ultra-moderno), damos de caras com as montanhas nevadas da Cordillera Real, encabeçadas pelo Ilimani, que guardam La Paz do alto do céu azul do Inverno seco e frio do Altiplano.




Chegados do Perú, passamos uns dias em La Paz e logo seguimos para Peñas. Peñas é uma pequena aldeia rural em frente à Cordillera Real onde um turista aleatório nunca pensaria em passar. Perdida no campo, com uma vista magnífica sobre a Cordillera, a única coisa digna de nota que alguma vez ali se passou foi o esquartejamento de um líder indígena pelos espanhóis durante a invasão. No entanto, é neste pequeno canto do mundo que o padre italiano António Zavatarelli desenvolve vários projectos de ajuda à população e aos jovens locais. Passámos então duas semanas na excelente companhia de várias pessoas absolutamente improváveis, num óptimo ambiente de camaradagem, dando uma mãozinha à direita e à esquerda, onde foi preciso. Desde a instalação de duches na nova escola, a jardinagem, reparação de caldeiras, pintura de letras Aymara em frisos de capelas e aulas de meteorologia de montanha, fizemos um pouco de tudo. Assistimos à inauguração da tal capela, um verdadeiro circo cultural, escalámos e coroámos a visita com a subida (do Seb, do Padre e do Romain) e a mirada (minha e da Ana), da famosa cabeça do Condoriri, para termos a certeza que encerrávamos em beleza este nosso périplo sul-americano.



































































É sempre reconfortante conhecer-se um lugar como Peñas. Reconfortante, porque nos garante (se ainda houvessem dúvidas no final desta viagem…) que vale a pena continuar a ter fé na humanidade, que há pessoas que vivem a sua vida ao serviço dos outros. Reconfortante, porque agora sei que há pelo menos um lugar no mundo para onde posso fugir se um dia quiser fugir deste mundo.


Poucos dias depois de Peñas, dou por mim à janela de um TGV em direcção ao norte de França, a caminho de um casamento. A viagem de avião foi longa, mais de 24 h, mas não longa o suficiente para cobrir a distância que separa o lá do cá. Estávamos a anos-luz da nossa Europa organizada, imaculada, standardizada. E agora, poucos dias mais tarde, atravessamos campos verdes a perder de vista a mais de 300 km/h.
Sempre disse que o difícil não era partir, como todos fazem crer. O que custa é chegar. Chegar demora mais do que 24 h de avião. Se calhar a alma vem de barco porque tem medo das alturas. Há de andar, então, perdida no meio do Atlântico umas semanas mais. E há de chegar a Portugal, quando der à costa, vinda lá do longe, pois chocará com o país mais ocidental da Europa, e daí tentará encontrar-me.
Esteja onde estiver, há de encontrar-nos rodeados de família e amigos: afinal de contas, foi por isso que voltámos.
«Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu..»
(Fernando Pessoa)
Isa, Tunupa, Zavicha – Padre António – Padre Leo – Ana – Rosmer, Askid, Leo, Wilmer
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