Para nós a Carretera Austral começou no seu fim, em Caleta Tortel, onde a estrada termina abruptamente numa vila de passadiços de madeira e casas palafíticas.
Saímos de Puerto Natales às cinco da manhã, num ferry que demoraria mais de 48h a atravessar uma das regiões mais húmidas do planeta, a zona dos fjords do Sudoeste Chileno. 48h de navegação sempre com terra à vista: fjords e mais fjords em montanhas cobertas de vegetação, musgo e turbal até ao seu mais ínfimo centímetro. E água, água salgada nos canais, água doce que cai do céu incessantemente todo o ano e que escorre pelas montanhas circundantes em cascatas violentas que se precipitam no mar, e água sólida, nas calotes glaciares que se entrevêem entre as nuvens quando o Sol força a sua breve entrada.
O Ferry, os fjords e o céu cinzento.
Montanhas de turbal e água e água…







Caleta Tortel tem um charme muito particular de aldeia de fim de mundo e também de aldeia palafítica. Este último charme é também o pesadelo de qualquer ciclista (especialmente dos tandemistas!). Ao fim de dois fantásticos dias de sol e calor, demorámos quase uma manhã inteira para conseguir sair de tanto charme.










Caleta Tortel – Cochrane
Este primeiro tramo foi inaugurado por uma tempestade de tipo tropical e pela felicidade de finalmente sentir calor. Sim, pela primeira vez desde o início da nossa viagem pudemos pôr as nossas t-shirts Natural Peak e calções de ciclista ao léu! E não, não é mais pampa que vemos todos os dias: o nosso caminho é agora pautado por uma vegetação tão densa que qualquer um se creria na selva amazónica e por glaciares que assomam de tempos a tempos acima das copas das árvores, como gigantes cogumelos brancos.
O mais marcante deste tramo foi talvez o encontro com a Luzmilla, velhota extremamente simpática que vive numa dessas casitas perdidas na beira da Carretera a que o governo chileno já fez chegar a energia solar. Passámos o seu portão atraídos pelo apelo do cartaz que dizia “Hay verduras” (carência profunda desde os nossos tempos em Tierra del Fuego) e saímos 4h mais tarde, já com o chá tomado, pãezinhos caseiros com compota caseira comidos, e os braços cheios de quantas groselhas e framboesas pudemos colher e carregar.





Cochrane – Puerto Río Tranquilo
Em Cochrane, vila banal destas paragens, lutámos com a internet deste fim de mundo para tentar actualizar o nosso blog e saímos tão furiosos da luta que partimos a corrente do pobre Quetzal. Reparação, dormida em casa abandonada que apareceu mesmo a calhar, e chegámos no dia seguinte a Puerto Bertrand, um bonito pueblo de beira-lago, para abastecimento de víveres (aqui na Carretera podemos finalmente carregar comida para apenas um ou dois dias e recuperar o peso perdido em Tierra del Fuego) e seguimos depois em direcção ao Lago General Carrera (ou Buenos Aires, dependendo do ponto de vista), de lindas águas azul-turquesa-caraíbesco. Lá encontrámos uma praia privadas só para nós, no meio de todas as outras já ocupadas e aí dormimos. No dia seguinte chegámos a Puerto Río Tranquilo onde acabámos por ficar um dia mais esperando melhor tempo e encontrar, por puro acaso, a famosa dupla tandemista francesa de renome que já havíamos cruzado meses antes em Puerto Natales, Emma e Apaulline. Com elas visitámos as turísticas mas interessantes Capillas de Mármol no dia seguinte e fugimos depois ao bando de mochileiros que pedem boleia à saída desta vila.




E as Capillas de Mármol…

Puerto Río Tranquilo – Coyhaique
De Puerto Río Tranquilo até depois da (infernal) subida de Cerro Castillo fomos confrontados a um dos provavelmente piores rípios da nossa curta história de ciclistas na América do Sul, mas também a algumas das mais belas paisagens.
No final deste tramo, entrevemos temporariamente uma espécie de pampa e forte vento face que nos fizeram fugir numa pick-up à dolorosa sensação de déjà-vu.
O bosque encantado…
…e o glaciar ao fundo.
Coyhaique e em como tivemos de correr como tolinhos até Puerto Raúl Marín Balmaceda
Chegados a Coyhaique, descobrimos que passar entre Chiloé e a Carretera Austral era o sonho de toda a gente para este Verão sul-americano de 2016-2017. Damos por nós a ter então como única opção para sair em direcção a Chiloé, uma passagem no ferry 4 dias mais tarde, a partir de um pequeno pueblo de seu nome Puerto Raúl Marín Balmaceda, uns 300 kms mais a norte. Assim sendo, como ainda não pedalamos assim tão rápido e havía ainda por cima alguns sítios imperdíveis a visitar no caminho, saímos de Coyhaique apenas umas horas mais tarde e passámos os 3 dias seguintes numa espécie de missão de boleia miserável em estradas desertas, pedaladas furiosas e encontros improváveis. O nosso Quetzal sofreu a sua primeira ferida profunda de guerra numa batalha contra uma pick-up selvagem que atravessava um verdadeiro campo de combate. Uma rasgadela profunda no quadro de alumínio que. nos causa o primeiro grande desgosto da viagem. Felizmente não arriscou a sua vida em vão, conseguimos aproveitar uma tarde livre na praia oceânica de Raúl Marín, uma das mais bonitas destas paragens e do Mundo em geral, onde tomámos o banho de mar mais austral das nossas vidas com vista aos golfinhos e glaciares ao longe.




Chiloé: Quellón – Quinchao – Quellón
Se tivéssemos de descrever o que foi para nós Chiloé em poucas palavras, diríamos talvez: boa comida, pescadores, igrejas de madeira, estradas insuportáveis e ilhas bucólicas.
Chegados dia 7 de Fevereiro a Quellón e obrigados a repartir dia 12 de Fevereiro do mesmo porto, fizémos o que pudemos para comer todas as iguarias típicas famosas de Chiloé. Fomos à costa oeste, atravessando a ilha grande ao meio até Cuchao, fomos a Chonchi, a Castro e a Dalcahue, e ainda demos um saltinho à ilha de Quinchao, história de ir até à pontinha do outro lado onde vivia a Maya do meu livro da Isabel Allendr e de confirmar que as subidas e descidas de Chiloé não devem nada às Carretera Austral. Tudo isto sempre acompanhados pela Apo que tinha perdido a piloto do seu tandem.













Chaitén – Río Puelo
Depois do inferno de turistas e carros da grande estrada asfaltada que liga o norte ao sul de Chiloé, o regresso à Carretera Austral soube-nos pela vida. Mais floresta tropical e glaciares, desta vez com vulcões à mistura.




Passamos por Hornopirén e somos depois atacados por uma tempestade diluviana que nos obriga a temporizar o nosso avanço de durante quatro dias que passamos numa ilha privada dum milionário a comer que nem reis, o tempo necesário para confirmar que afinal o mundo não estava prestes a acabar e a estrada ainda existia ao nosso regresso.

Até Contao seguimos pela costa, atravessando aldeias de pescadores e praias bonitas, pedalando sobre uma das mais agradáveis estradas que encontrámos até agora, de tão plana que poderíamos quase crer que tudo não passava de um passeio de Domingo na praia da Barra.
Tal passeio não passou de uma ilusão, e voltámos à vida real até chegar a Río Puelo, algumas mil subidas e descidas mais tarde sobre um ripio que teve certamente em tempos coberto de minas e sob uma chuva torrencial inclemente que não nos deixou outra escolha que passar a noite na hospedaje da Elsita, onde tomámos um duche quente e secámos tudo, desde o guiador à ponta dos atacadores.

Río Puelo – El Bolsón
Quando se olha para um mapa, rapidamente se percebe à primeira vista que quem quer ir da Carretera Austral até El Bolsón tem duas opções clássicas: passar para o lado argentino bem mais a sul, por Chile Chico ou Futaleufu, ou passar bem mais a norte, algures na zona de Villa Angostura. Quem olha mais obstinadamente para um mapa, repara em como seria mais conveniente poder atravessar directamente até El Bolsón através da cordilheira. Quando se faz um grande zoom num mapa, vê-se que sim, que há uns caminhos e até um passo fronteirço convenientemente autorizado. Sobre como são os caminhos desde a última “grande” aldeia do lado chileno, Río Puelo, e El Bolsón, ou Puelo, do lado Argentino, ninguém parece ter uma ideia muito concreta. Nem sequer em Chaitén, nem em Hornopirén é claro que também não em Río Puelo. Entre histórias, encontros fortuitos e conclusões obtidas a partir de análises estatísticas de comentários aleatórios, temos a ideia de que haverá ripio habilitado para viaturas até certo ponto, e depois só a pé, a cavalo ou, quiçá, em bicicleta. Partimos de Río Puelo ainda sob um céu cinzento e chuvosoque se foi abrindo pouco a pouco até o dia se transformar num pleno dia de Verão, quente e cheio de Sol. Ao fim de uns 14 km, chegamos ao primeiro ferry que, como é evidente, está atrasado. Lá nos deixam entrar sem pagar pela bicicleta, e saímos do outro lado do lago azul-turquesa mais os seis ou sete carros que cabiam na barcaça. Rapidamente percebemos que para estes lados já vem muito menos gente que antes. A paisagem muda progressivamente de verde tropical a verde alpino, os rios e lagos voltam a ser turquesa, e as subidas e descidas ganham inclincação. Ainda ao fim deste dia chegamos a Llanada Grande, que é na realidade bastante pequena, e percebemos que neste último verdadeiro ponto do mapa nem os carabineiros nos sabem dar informações precisas sobre como passar para a Argentina.
No dia seguinte continuamos a seguir o ripio que vai em direcção à Argentina, e passamos em Primero Corral e depois em Segundo Corral. Feios os nomes, bonitas as terras, a paisagem continuou a mudar e damos por nós num imenso vale aberto ao meio da cordilheira, com rios lindíssimos e montanhas fantásticas. A partir do Primero Corral já não há estrada para veículos motorizados, mas o Quetzal lá se safa, transformado em Quetzal TT (todo-o-terreno), até chegarmos ao primeiro riacho. lindo riacho sem ponte apta para bicicletas, lá transportamos sacola a sacola e por fim a a bicicleta, em braços até ao outro lado. A água estava fria e transparente, o Sol estava quente e forte. Passámos ao lado de uma fiesta costumbrista em preparação, mas já quase sem dinheiro chileno preferimos guardar o que resta para um hipotético barco. Passamos em terriório Mapuche e encontramos o primeiro barqueiro que faz a curta travessia até ao lado onde fica o posto fronteiriço dos carabineiros chilenos. Umas quantas horas mais tarde conseguimos finalmente os vistos de saída e compreendemos finalmente que para chegar ao lado argentino temos duas opções: fazer um caminho de cerca de 30 km a pé, não habilitado para veículos nem cavalos e, sobretudo, bicicletas tandem de 80 Kg; ou pagar ao único tipo quem tem autorização dos governos chileno e argentino para transitar do lago Inferior, chileno, ao lago Puelo, argentino. Após vários encontros lá nos convencemos que quatro dias a empurrarem levantar a bicicleta mais todas as sacolas é capaz de não ser assim tão divertido, e negociamos com o tal do Gaillardo que nos leve com ele amanhã, mais barato que normal, porque já não temos planta suficiente. Por hoje, dormimos no embarcadoiro, à beira-lago, e esperamos que por aqui passe às 7h15 da manhã para nos levar até à Argentina.







Luzmilla – Franco y Jorge – Viktor – Claudio – Gaillardo
2 Responses
Guigui
🙂
hugo
Heyy!! J’ai rien compris mais c’est super beau où vous êtes ;)! Amusez vous bien! Bises